Fernando Correia da Silva      Vidas Lusófonas

http://www.vidaslusofonas.pt

 

Artigo de ¾ de página do JORNAL DO BRASIL de 25/07/99, com chamada na 1.ª página com fotos dos biografados Machado de Assis, Florbela Espanca, Amílcar Cabral e Salazar.

 

Internet acolhe 34 vidas lusófonas

Site de Lisboa apresenta biografias de portugueses, africanos e brasileiros
que encantam visitantes de todas as idades

Antônios que enfim descansam

Tem as mãos tolhidas mas não desiste. Pede aos operários que nelas amarrem as ferramentas, porque tem mais um profeta para esculpir. É aleijado, mas só no corpo. Vale a pena ouvir a história de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.

"Não me temo de Castela, temo-me desta canalha..." Foi este o desabafo do Padre Antônio Vieira, defensor dos índios brasileiros, dos escravos africanos, dos judeus e cristãos-novos, e anda por isso a Inquisição a farejá-lo. Todos vêm abrigar-se em Vidas Lusófonas, e aqui já moram 26.

 

Salgueiro Maia dos Cravos

Ventania a sacudir o Portugal poeirento... Salgueiro Maia, Capitão de Abril, acaba de se instalar em Vidas Lusófonas, onde já moram 30 e tudo está a acontecer, cada vida/cada conto.

 

Inquietações de Florbela Espanca

- Eu quero amar, amar perdidamente! Amar só por amar: Aqui... além... Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente... Amar! Amar! E não amar ninguém!

Conseguirá? Batam à porta, perguntem-lhe, ela acaba de instalar-se em Vidas Lusófonas. Aqui já moram 33 e tudo está a acontecer, cada vida/cada conto. A morada é

MARINILDA CARVALHO

 

Mensagens como estas apresentam todo mês os personagens que desembarcam no website português Vidas Lusófonas - uma coleção preciosa de biografias de portugueses, africanos e brasileiros que marcaram seu tempo. A primeira atração é o próprio texto do coordenador do sítio (como se diz em Portugal), o escritor e jornalista Fernando Correia da Silva. Seus e-mails anunciando os novos hóspedes da morada são um colírio, nestes tempos em que piadas, correntes, propaganda, alertas de vírus e todo tipo de lixo abarrotam caixas postais.

Fernando tem 68 anos, dos quais 18 vividos no Brasil, onde comandou a editora Difusão Européia do Livro e fundou o suplemento infantil da Folha de S. Paulo. Dois anos atrás, editava, no jornal Público, de Lisboa, fascículos com biografias de vultos históricos internacionais. Quando o projeto terminou, sugeriram-lhe que passasse a experiência para a grande rede. "Eu tinha a fúria de querer aprender o que era a Internet", conta. "E aceitei o desafio, optando por personagens lusófonos."

Daí a convencer a colaborar "uma equipa" de jornalistas e escritores de língua portuguesa, foi um pulo. O sítio estreou em 1° de outubro de 1998, ganhou três prêmios e já oferece 34 biografias, ricas em dados, mas enxutas, concisas, diretas, no máximo seis páginas cada uma. "Estamos fartos de textos acadêmicos", diz Fernando.

Presente - A lista de nomes é um presente para pesquisadores, estudantes e curiosos de todas as idades. Por seqüência de datas de nascimento, estão lá: D.João I, Fernão Lopes, D.João II, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Fernão de Magalhães, Manuel Sepúlveda, João Ramalho, Damião de Góis, Fernão Mendes Pinto, Luís Vaz de Camões, Fernão Dias Pais Leme, Padre António Vieira, Tiradentes, "O Aleijadinho", Machado de Assis, Eça de Queirós, Soares dos Reis, Ngungunhane, Santos Dumont, Sacadura Cabral, Heitor Villa-Lobos, Fernando Pessoa, António de Oliveira Salazar, Graciliano Ramos, Almada Negreiros, Florbela Espanca, Humberto Delgado, Fernando Lopes-Graça, Miguel Torga, Maria Helena Vieira da Silva, Amílcar Cabral, Salgueiro Maia. Cândido Portinari logo vai se "registrar".

Chegam em breve Monteiro Lobato, Getúlio, Juscelino e, talvez, Maria Quitéria - promessa do brasileiro Hélio Pólvora, que escreveu para o sítio as biografias de Machado de Assis e Graciliano Ramos - as duas, simplesmente brilhantes.

Está pronto o texto sobre Cândido Mariano Rondon, não levado ao ar por preciosismo do autor, o próprio Fernando. Ele ouviu de um amigo brasileiro, já morto, que o marechal "foi atingido por um glaucoma e acabou cego de uma das vistas". Como não confirmou o dado, que considera fundamental, hesita em dar teto ao pai das comunicações brasileiras.

 

Não que Vidas tenha que ser rigoroso como um manual de História. "É antes uma galeria de retratos recriados a partir de pistas que a história nos legou", diz. Em cada biografia, os autores aliam "o rigor da informação ao fascínio da intriga romanesca". E o mais curioso: tudo é narrado no presente do indicativo, uma das normas de estilo do sítio. "O que está a ocorrer tem mais força que o ocorrido", argumenta Fernando. "E o rigor histórico não está condenado à prosa de notário ou ao verbete enciclopédico. Deve ter impacto de short story."

A página das normas estilísticas, aliás, é imperdível, com dicas para candidatos a biógrafo. Algumas delas:

"Evidenciar o nó dramático da história que se conta. É ele que amarra o interesse do leitor da primeira à última linha. Antes de escrever a história, tente o autor resumi-la em prosa telegráfica. Esta é a melhor forma de achar o seu nó dramático;

Não é preciso explicar o porquê da acção, ela que se explique por si-mesma, se usar muletas a prosa é coxa;

Fugir das orações intercaladas como o diabo da cruz. Por exagero dizemos: onde está uma vírgula ponha-se um ponto final;

Fingir a neutralidade. Em vez de tirar conclusões, o autor deve é encadear os acontecimentos de tal forma que force o leitor a tirar as suas;

A rarefacção de adjectivos, os quais estão sempre a mandar bocas e por isso travam o desenrolar da acção. Que nos perdoe o Eça de Queiroz, mas libertem-se os substantivos da vampiragem dos adjectivos!"

Muito autor reclamou das exigências, brinca Fernando. "Isso dá briga o tempo todo."

Narrador - Às vezes, o próprio personagem é o narrador - um recurso usado no texto de Fernando sobre Salazar (ver quadro). Foram dois meses de pesquisas sobre o ditador. "A vida dele teve muitas voltas e contravoltas. Salazar nunca dizia o que queria", conta, de Lisboa, pelo telefone.

Além de Fernando escrevem as biografias, por ordem alfabética, Alberto Dines, Carlos Loures, Carlos Pinto Santos, Cristina Vaz, Dora Ribeiro, Eric Nepomuceno, Hélio Pólvora, João Sodré, Leonor Lains, Mirna Queiroz, Norma Couri, Orlando Neves e Rolando Galvão.

Ao lado de cada biografia há um link para a Tábua Cronológica (1500 a.C.-1989), outra atração do site, que responde à pergunta "O que estava a acontecer no resto do mundo quando vivia esta personalidade?", ajudando o visitante a se localizar no tempo.

E mais: a uma página chamada Varanda sobre o tempo e o vasto mundo aflui gente de todas as épocas e quadrantes, da Antiguidade ao século 20, de Napoleão a Cristo. Para "evitar a armadilha do lusocentrismo", argumentam os autores. Porque são menores, Fernando chama de "visitas breves" as 62 biografias constantes da página - no ano 2000 serão 600.

O coordenador ainda não está satisfeito. Falta colaboração principalmente para personagens africanos. E até brasileiros: Castro Alves, Manuel Bandeira, Drummond, Benjamim Constant, todos têm reserva em Vidas, embora faltem biógrafos. E também falta patrocínio. Os três atuais são "curtos" para os planos de Fernando. "Os colaboradores às vezes recebem, às vezes não", lamenta. Organizações brasileiras procuradas nem sequer responderam, como Fundação Odebrecht e Banco do Brasil.

Um dos planos é a versão das biografias para o inglês. "Não queremos da Internet apenas um barco para irmos a navegar pelo mundo", diz Fernando. "Também queremos que o mundo comece a navegar por este mar em cujas margens se fala português."

Como atração extra, Fernando vai simular chats (conversas) entre internautas e personagens biografados. Uma "cavaqueira" com Fernão de Magalhães poderia começar assim:

Coordenador - Fernão, o que acha da Internet?

Fernão - Não entendo como isto é possível. Demorei cerca de dois anos para ir de Sevilha às Filipinas. Agora, instantaneamente, posso estar no outro lado do mundo. É realmente espantoso o engenho humano!

 

Trechos de Antônio Salazar

por Fernando Correia da Silva

"Nos corredores da Ditadura militares conspiram com liberais (os ‘bonzos’ recuperados) e conservadores para me derrubarem. Mas em 1930 já ninguém consegue remover-me, peguei de estaca. Não sou ainda o presidente do Conselho de Ministros, mas hei-de ser, não tarda muito. Com o auxílio do exército imponho novas contribuições. Veto despesas públicas e alcanço o equilíbrio do orçamento, liquido a dívida flutuante, estabilizo a moeda. Não me arredam, já não conseguem, ou eu ou a bancarrota.

***

Aperta-se o cinto, há quem se queixe da vida, pelos menos na capital. Mas nas aldeias ninguém se queixa. Ali, às vezes, não há trabalho, mas raramente eles deixam de comer. Ali, às vezes, falta dinheiro e roupa para vestir, mas há sempre uma côdea ou um caldo para enfrentar um novo dia. Prefiro o povo das aldeias.

***

Reorganizo as forças militarizadas, a GNR - Guarda Nacional Republicana, a PSP - Polícia de Segurança Pública, e a Guarda Fiscal. E chamo ao meu gabinete, primeiro o Agostinho Lourenço, director da PVDE; mais tarde o Silva Pais, director da PIDE. Alerto:

- Mais vale um safanão a tempo do que deixar o Diabo à solta no meio do povo.

Contam-me como fazem. Localizam onde pousa um dos suspeitos. A meio da noite arrombam a porta, dão-lhe voz de prisão e uns sopapos, arrastam-no para a sede, interrogatório, safanão primeiro. Se o subversivo conta o que sabe, é porque já está a caminho da salvação. Se não fala, safanão segundo, espancamento. Se calado continua, safanão terceiro, é a penitência da estátua, dias e noites obrigado a ficar sempre de pé, até que as suas pernas se transformem em dois trambolhos. Variante do terceiro safanão é a penitência do sono, dias e noites sem dormir; quando cabeceia, logo acendem um holofote contra os seus olhos. Um dos possessos, ao fim de quinze dias e quinze noites sem dormir, começou a beijar a parede, alucinações, pensava que estava na cama com a mulher. Depois entrou em coma. Normalmente, depois do terceiro safanão, os inconfessos entram em coma. Ninguém os mata, eles é que se deixam morrer porque se negam à salvação.

Alguns sobrevivem ao terceiro safanão, mas nada mais podemos fazer por eles, almas penadas já são em vida. Com ou sem julgamento são despejados em masmorras. Em 1936 inauguro as colónias penais do Tarrafal e de Peniche. É no Tarrafal que vai morrer Bento Gonçalves, secretário do Partido Comunista. Outros seguem-lhe o exemplo; no Tarrafal e em Peniche, no Aljube e em Caxias.

Não, não é preciso usar da violência, somos um povo de brandos costumes. Aqui, para governar, um safanão a tempo é quanto basta.